Cerca de duas semanas antes da prova do Swim GP, liga-me o Felício para me perguntar se eu conseguia substituir um dos kayakers que o tinha de acompanhar durante a prova dos 20kms, que partiria do Padrão dos Descobrimentos em direção à praia dos Pescadores em Cascais. Como o corajoso do Felício iria fazer a prova a rebocar o José, como a distância só por si já não fosse um verdadeiro desafio, precisava de duas pessoas no kayake, um para ele e outro para o José quando fosse a altura de os ajudar com os reabastecimentos. O outro kayaker seria o Rui, outro velho conhecido e parceiro de há muitos anos, por isso estava bastante confiante na composição da nossa equipa.
Quando o Felício me fez o convite claro que o teria de aceitar, seria uma honra poder ajudá-lo a concretizar mais um dos sonhos do José. No entanto devo dizer que não encarei este convite como um desafio, inconscientemente encarei-o como uma simples missão de acompanhamento, qual seria a dificuldade de duas pessoas, num kayake, acompanhar um nadador durante 20kms ainda por cima a rebocar outro kayake? Se eu pudesse viajar para o passado e falar com o meu eu do passado dir-lhe-ia - Seu idiota, não tens a mínima noção do que irás passar.
Na manhã da prova, enquanto preparávamos os kayakes o primeiro contratempo, que mais uma vez, na altura, relativizei e não esperei que durante a prova se tornasse num problema tão grave. O nosso kayake, que era insuflável, só mantinha ar nas duas laterais, a base estava com uma fuga e não retinha o ar. Colocámos o kayake na água, com toda a carga que teríamos de transportar e entrámos nós. O kayake ficava mais submerso do que seria suposto, mas a água não chegava ao topo...estava bom para seguir! Às 11h começou a prova, com o apoio da família presente na partida, lá seguimos nós rumo a Cascais.
Esta primeira fase da prova, ficou marcada pela boa disposição. Ao início alguma incerteza em relação às boias, no regulamento tinha lido que teríamos de dar o braço esquerdo às boias, mas durante a prova ninguém estava a respeitar as boias. Como éramos quase os últimos comecei a perceber as correntes e como ia no lugar da frente do kayake ajudei o Felício na orientação de modo a apanhar as melhores correntes e tentando fazer uma trajetória o mais a direito possível. Mesmo assim ainda confirmámos as boias com um elemento da organização, que nos disse que as boias eram só orientadoras, música para os meus ouvidos. A cada pequena baía que passávamos, como fizemos uma trajetória mais aberta, passávamos alguns nadadores. Claro que mais à frente voltávamos a ser passados mas nesses pequenos segmentos ganhávamos tempo aos restantes. E não fosse o Rui a dizer para sermos um pouco mais conservadores e eu teria traçado uma trajetória direta desde a Torre VTS de Algés até ao Forte de São Julião da Barra.
Esta fase foi tão boa, que inclusivamente o Felício aumentou o tempo entre abastecimentos, queria aproveitar a corrente forte durante o máximo tempo possível. O Rui levou a coluna portátil e até direito a música tivemos, o que fez José ainda mais sorridente do que é normal. Íamos ali os 3 a divertirmo-nos enquanto o Felício nadava com alguma facilidade. Os 10 primeiros quilómetros em menos de 2 horas são um forte indício da velocidade a que estava a corrente a nosso favor, o Felício não estava a nadar, estava a voar dentro de água.
Mas estávamos a chegar à parte dura. Chegados à praia da Torre começamos a sentir a corrente e a ondulação. Inicialmente tive a esperança que fosse só ali frente à praia da Torre porque sei que ali há sempre muita corrente. Nessa altura com a ondulação começou a entrar água no kayake, muita água, até que começámos a chegar a um ponto em que só eu remava e o Rui com um cantil tirava água do kayake. Uma das imagens que me fica, é o Felício a nadar e a parar para se rir de nós enquanto tirávamos água do kayake.
Naquele trajeto frente à praia de Carcavelos tive uma falsa sensação que estávamos a andar bem por dois motivos, primeiro ainda estava com bastante força física e segunda porque estávamos a ultrapassar novamente muitos nadadores que foram mais junto à praia e estavam a lutar contra a rebentação. Por volta dos 14kms parámos pela primeira vez numa plataforma de reabastecimento para apanharmos coisas para nós comermos. Passado 1 quilómetro e meia hora depois, para se perceber a dificuldade em que nos movíamos, paramos para alimentar o Felício e o José. Quando voltamos a arrancar percebo claramente que tínhamos sido puxados para trás pela corrente. Nessa altura disse-lhe, que a partir daquele momento só fazíamos paragens nas boias, de modo a agarrarmo-nos às boias e não sermos arrastados pela corrente.
O kayake cada vez metia mais água, o Rui cada vez passava mais tempo a tirar água, e eu sozinho tentava remar para não perdermos terreno para o Felício e o José. Nós não os estávamos a conseguir acompanhar e tive diversas vezes de pedir ajuda ao Rui para nos recolocar ao lado deles. O Felício virou-se para nós a dada altura e disse que parecia que não estávamos a andar. Eu tive de lhe dizer uma meia verdade, eu já tinha reparado que mal estávamos a andar, mas disse-lhe que era impressão dele que estávamos a ir bem dada a corrente contra que estava.
Pouco depois dos 16kms de prova estávamos a ficar tão atrasados por o Rui estar a tirar água do kayake, e eu estar a ficar exausto que não os conseguia acompanhar, que uma mota de água se ofereceu para nos recolocar ao pé deles. Mas o reboque da mota de água ainda encheu mais o kayake de água, ou seja, na boia seguinte foi o tempo todo a tirar água. Nessa altura também tivemos conhecimento que quase metade dos nadadores ou kayakeres tinham já desistido. Realmente já tinha reparado vários atletas dentro dos botes que passavam por nós, assim como ainda não tinham passado por nós todos aqueles nadadores pelos quais tínhamos passado frente à praia de Carcavelos.
Quando chegámos frente à praia de São Pedro um barco da organização diz-nos que a partir da boia seguinte faltava 4,5kms até à meta. Ao pararmos na boia eu estava no meu limite, ao ponto do Felício pedir-me um abastecimento e eu bloquear e de não me lembrar onde tinha guardado as coisas. O Felício percebeu que eu estava por um fio e disse que se alguém se sentisse mal que ninguém continuava, já tínhamos feito 17,5kms, já tinha sido bom e que parávamos. Claro que não iria desistir, o Felício era quem estava a fazer o esforço maior e se ele não quebrava, eu também não era o elemento da equipa que iria quebrar, nunca me perdoaria se por minha culpa não conseguíssemos chegar ao fim.
Até aos 19kms de prova foi o meu cabo das tormentas, de boia a boia, não conseguia recuperar por muito que me hidratasse e que me nutrisse, não sabia como iria conseguir terminar a prova. A cada paragem, a cada boia estava a ficar cheio de frio por o kayake estar sempre cheio de água. Aos 19kms parámos na última plataforma de reabastecimento, eu tive de sair do kayake e deitar-me na plataforma, estava exausto, cheio de dores de costas e com frio. O Felício e o José arrancaram e nós ainda ficámos mais uns segundos na plataforma para eu voltar ao kayake. Não estávamos a conseguir fechar o espaço, e um barco da organização queria rebocar-nos e recolocar-nos, mas eu reparei que eles vinham a rebocar um kayake duplo vazio e perguntei se podíamos mudar de kayake. O Rui ainda ficou meio renitente porque tínhamos de mudar tudo de kayake mas foi a melhor coisa que fizemos, o barco recolocou-nos e passadas 3-4 remadas percebi que precisava de fazer metade da força para andar ao dobro da velocidade.
Os últimos 2,5kms foram uma tranquilidade para mim, conseguíamos dar algumas remadas, parar de remar e só puxar por eles, descansando nós próprios durante esses momentos. Senti que fazia mais 10kms se fosse preciso, mas visto agora com alguma sobriedade, era só uma sensação minha. Nessa altura passa por nós o barco que deveria vir a rebocar o nosso kayake, e disse-nos que tiveram de tirar o kayake da água que ele se estava a afundar, para se ver bem o estado daquele kayake. Até ao fim tivemos direito a guarda de honra, éramos a última equipa, que iriam acabar a prova, ainda dentro de água, e 3 motas de água mais 1 barco estavam a acompanhar-nos até à meta, inclusivamente uma das motas desviou um barco da nossa trajetória para não o termos de contornar. Depois de 8h4m, lá conseguimos atingir a meta, cerca de 2 horas para fazer os primeiros 10kms e 6 horas para fazer os seguintes 12,2kms provam bem a dureza do que foi a segunda parte da prova.
Ao sair do kayake, como se vê pelo vídeo, caí estatelado de costas na água, não me conseguia aguentar em pé. Quando voltei a levantar-me outra vez comecei a desequilibrar-se novamente para trás, começando a dar passos para trás para não voltar a cair, e só não caí porque fiquei com água pela cintura. Como na partida, à chegada estavam as meninas da minha vida a dar-me força, a Liliana, a Clara e a Luciana estavam lá para me dar carinho, força e cuidar de mim. O José estava em hipotermia, apesar de durante toda a prova nos estar constantemente a dizer que estava bem, de ter puxado pelo Felício até ao último metro, ele estava num péssimo estado, um herói, um exemplo para todos nós. Obrigado José por seres a nossa inspiração, obrigado Rui por teres aguentado quando eu estava no meu limite, obrigado Felício por me teres convidado a fazer parte desta maravilhosa equipa e por teres conseguido superar este tão grande desafio.
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